Ide, e dizei àquela raposa…

“Naquele mesmo dia chegaram uns fariseus, dizendo-lhe: Sai, e retira-te daqui, porque Herodes quer matar-te.
E respondeu-lhes: Ide, e dizei àquela raposa: Eis que eu expulso demônios, e efetuo curas, hoje e amanhã, e no terceiro dia sou consumado.”
Lucas 13:31-32

Nessa passagem bíblica Yeshua (Jesus) está sendo advertido pelos seus amigos, os fariseus, sobre a perseguição que Herodes Antipas tinha lançado sobre Ele. Então Yeshua (Jesus) responde: “E respondeu-lhes: Ide, e dizei àquela raposa:” O que Yeshua quiz dizer com “dizei àquela raposa?
Me lembro dos meus anos de menino quando contavam-me estórias onde a raposa era apresentada como o bicho, sagaz, inteligente e astuto. Talvez seja essa a imagem que temos quando lemos essa passagem bíblica. Mas, vamos tentar colocá-la em seu contexto original no mundo hebraico/grego.
Conforme os estudos de David Bivin [1a] “a metáfora “raposa” provou ter significado dúbio para falantes de línguas europeias. Muitos especialistas do Novo Testamento seguiram o sentido claro e amplamente conhecido da palavra grega e do idioma sem primeiro fazer uma pergunta importante: “Como a palavra “raposa” era usada pelos judeus?” A resposta revela uma diferença no uso do hebraico e do grego, e deve servir como um lembrete de que sempre se deve interpretar as metáforas dentro do ambiente cultural adequado” [1b]
No grego a palavra raposa é (alōpēx), ela é associada com a esperteza e ligeireza em ataques noturnos a outros animais, também seu oportunismo em roubar prezas já mortas por animais mais fortes do que ela. Portanto os gregos fizeram a associação exclusiva dessas características a pessoas oportunistas, inteligentes e astutas.
Entretanto a palavra raposa no hebraico é (שׁוּעָל, shū’āl) que tem um significado muito mais amplo além do grego. Vejamos o uso mais amplo nos escritos dessa época:
1- Como astúcia. Na Midrash R. Eleazar ben R. Shim’on [final do segundo século d.C.] disse: “Os egípcios eram astutos e é por isso que as Escrituras os comparam a raposas.” (Cântico dos Cânticos 2:15).
2- Como ardilosa. No comentário babilônico do Talmud (Berachot 61b) o Rabi Akiva contou uma parábola:
“Uma raposa estava caminhando ao longo de um rio e viu peixes correndo para lá e para cá.
Ela disse: ‘Do que vocês estão fugindo?’
Disseram-lhe:‘ As redes que os humanos espalham para nós ’.
Ela disse: ‘Por que vocês não vêm para a terra firme? Vamos viver juntos, como meus ancestrais viveram com seus ancestrais. ‘
“Disseram-lhe:‘ És tu aquele de quem se diz que és o mais sábio dos animais? Você não é sábio, mas tolo! Se, em nosso ambiente de vida, temos motivos para ter medo, quanto mais no ambiente de nossa morte!
3- Como pretensão. O Hebraico tem um significado mais abrangente, é extraído do contraste que os judeus faziam entre o Leão e a raposa, o homem com poder e maior excelência intelectual era comparado ao Leão enquanto um homem com menor excelência, era associado com a raposa. Aqueles que tinham a pretensão de ser algo que não eram, era associado com as raposas. O leão tem uma juba grande e pomposa, a raposa por sua vez é um animal esquelético mas tem um pelo grande e pomposo, possui uma pretensão de ser grande e importante, mas na verdade não tem consistência alguma.
4- Com conotação moral. O Rabino Mathia ben Harash disse: “Seja a cauda dos leões, e não a cabeça das raposas. Mishná [2] Pirkei Avot 4:15 Propondo a ideia de que é melhor ser alguém de baixa posição mas com uma vida moral e espiritual correta do que estar entre aqueles de posições superiores e poderosos mas vivendo uma vida degradada e corrompida.
Resumindo o grego associa a raposa com a astúcia e esperteza, enquanto o hebraico é mais abrangente adicionando na sua associação a pretensão e conotação moral. O texto ao ser traduzido para nossa lingua perdeu parte vital do seu significado, perdeu a verdadeira dinâmica da repreensão de Yeshua (Jesus), implicitamente dando um falso significado positivo a sua resposta, exatamente ao inverso da intenção do Mestre.
Yeshua (Jesus) chamou Herodes de raposa depois que alguns fariseus relataram que Herodes queria matá-lo. A resposta de Jesus desafiou seus planos: “Diga a Herodes que primeiro tenho que trabalhar.” Mostrando aqui que Ele tinha o poder e não Herodes; “dizei àquela raposa…”
Herodes se considerava como um leão poderoso, mas Yeshua (Jesus) o rotulou de raposa, dando a entender que Herodes não era genuíno, verdadeiro e legítimo mas o comparou com uma raposa que apesar de ardilosa, está moralmente corrompida, é pomposa e acima de tudo pretensiosa, na verdade uma capa.
Para entendermos as palavras de Yeshua (Jesus) devemos entender quem era Herodes Antipas. Ele era filho de Herodes o Grande com Malthace (Samaritana), neto de Antípatro [3] do povo idumeu ou edomitas [4] que eram descendentes direto de Esaú filho de Isaac e Rebeca irmão gémeo de Jacó. Antípatro se converteu ao judaísmo e Herodes e seu filho Herodes Antipas se auto intitulavam rei do judeus por causa da herança de seus antepassados até Esaú, aquele que vendeu a primogenitura para seu irmão Jacó, mas nunca aceitou ter perdido. Na verdade, o trono de Davi tinha sido prometido por D-us para a linhagem de Jacó, Herodes Antipas se tornou um usurpador do trono e o povo judeu não o aceitava como líder, muito menos como rei.
Yeshua ao chamá-lo de raposa estava se referindo vários aspectos do poder usurpado e do caráter de Antipas. Antes de tudo, ele era ilegítimo e inapto para o cargo que tinha nas mãos, como a imagem do rei era associada ao Leão, ao rotulá-lo de raposa estava insinuando que era um pomposo, pretensioso que só tinha o poder por usurpação, era um impostor. Assim como a raposa é pomposa, cheia de pelo no exterior mas na verdade é um animal esquelético.
Yeshua (Jesus) o legítimo sucessor ao trono pela linhagem de Davi (Lucas 1:32) mostra sua autoridade ao responder e desafiar os planos de Antipas: “Diga a Herodes que primeiro tenho que trabalhar.” Jesus não estava insinuando que Herodes era astuto, ao contrário, ele estava comentando sobre a inaptidão ou incapacidade de Herodes em cumprir sua ameaça, todo o poder que ele tinha, só o tinha porque D-us havia permitido. Jesus questiona a linhagem, a estatura moral e a liderança do tetrarca e colocou o tetrarca “em seu lugar”. Isso se encaixa exatamente no quarto uso rabínico de “raposa” – conotação moral.
Vemos aqui a importância de entender o texto dentro do seu contexto cultural, histórico e linguístico, caso contrário corremos o risco de entender a passagem bíblica de forma antagônica, onde o texto sem seu contexto se torna um pretexto.

Author:
A Sfalsin

[1a] David N. Bivin (nascido em 20 de julho de 1939, em Cleveland, Oklahoma) é um estudioso bíblico israelense-americano, membro da Escola de Pesquisa Sinótica de Jerusalém. Seu papel na Escola de Jerusalém envolve a publicação do jornal Jerusalem Perspective (Online) e a organização de seminários. Bivin é membro da Escola de Pesquisa Sinótica de Jerusalém, um grupo formado por acadêmicos judeus e cristãos dedicado a melhor compreender os Evangelhos Sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas).
[1b} Retirado do artigo: That Small-fry Herod Antipas, or When a Fox Is Not a Fox, no site http://www.jerusalemperspective.com
[2] A Mishná, (em hebraico משנה, “repetição”, do verbo שנה, ”shanah, “estudar e revisar”) é uma das principais obras do judaísmo rabínico, e a primeira grande redação na forma escrita da tradição oral judaica, chamada a Torá Oral.
[3] Antípatro era um Idumeu, que prosperou na corte dos últimos soberanos hasmoneus, passou a governar a Judeia após a ocupação romana e foi o pai de Herodes, o Grande. Foi posto por Pompeu como procurador da Palestina em 67 ac
[4] Edom em Hebraico quer dizer “vermelho” porque Esaú tinha a cor avermelhada.

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